domingo, 15 de maio de 2016

A CRUZ

Seu pai era marceneiro, e foi com ele que João aprendeu o ofício.
Logo virou um profissional exímio.
Um dia, já homem feito – depois de fabricar uma porção de mesas, armários, cadeiras e até caixões de defunto –, resolveu fazer uma cruz.
Para ele, segundo o próprio.
Queria morrer pregado nela.
“Você quer ser Jesus Cristo, é?, disse sua mulher, ao saber daquele disparate.
“Claro que não!”, replicou ele.
“Então, por que essa loucura? Eu não te entendo!”
“Nem eu...”, tornou ele. “Nem eu me entendo, às vezes...”

...

Um mês depois, a cruz ficou pronta.
Os vizinhos, que tinham acompanhado todo o processo de feitura do madeiro, perguntavam, perplexos:
“Mas, João, você tem mesmo coragem de morrer crucificado?!”
“Tenho.”
“E quem vai pregar você na cruz? Você não pode se pregar sozinho, pode?”
“Não.”
“Pois então, como é que vai ser?”
“Na hora certa todos saberão.”
Os vizinhos, penalizados, balançavam a cabeça.
João havia enlouquecido. Coitado.

...

Certa noite, enquanto jantavam, João disse de repente:
“Maria, sexta-feira que vem será o grande dia.”
“O que é que tem?”
“A crucificação. A minha.”
“Pare de bestagem, homem. Sossegue. O melhor que você faz é me deixar usar aquela cruz como lenha, assim a gente economiza gás.
João sorriu.
A mulher só podia estar de brincadeira.

...

No dia seguinte, inesperadamente, Maria foi embora para a casa dos pais. Subiu no pau-de-arara com as duas malas e só fez dizer para o marido:
“Adeus, João.”
Ele, de pé na varanda, calado estava e calado ficou.
Quando o caminhão sumiu numa curva da estrada, João levantou-se, entrou no pequeno galpão onde estava a cruz, e, ajoelhando-se diante dela, disse:
“Pronto... Começou o meu calvário!”

...

Sexta-feira chegou. João passou o dia numa inquietação danada. Tudo parecia nebuloso, e foi assim, nessa nebulosidade, que mais uma semana transcorreu.
Na sexta seguinte, João teve febre alta, altíssima!
À noite, foi dormir pensando na esposa. Ela tinha razão... A cruz daria uma boa lenha. E logo agora que estava sem dinheiro, e o botijão de gás havia secado.
Mas depois, sério, reconsiderou: e se aquela ideia não passasse de uma tentação do diabo, para fazê-lo declinar do seu intento, dando adeus à crucificação?
Melhor analisar aquela situação com calma, pensou.
Estava disposto a suportar todo e qualquer castigo, desde que não tivesse que ir para o inferno.







segunda-feira, 9 de maio de 2016

MINGAU PARA DOIS

Lá fora, fustigando as árvores e o telhado do casarão, o vento é um prenúncio de temporal.
Cá dentro, na cozinha, a luz das velas deita sombras fantasmagóricas no chão, na mesa, nas paredes.
O velho prova o mingau do jantar, cospe, e empurra o prato:
            – Tira essa gororoba da minha frente!
            A moça balança a cabeça:
            – Deixe de birra, papai, e coma de uma vez...
            – Está surda, sua diaba? Tira isso daqui!
            Num gesto maquinal, a moça pega o prato e vai depositá-lo na pia.
            O velho se esparrama na cadeira, pronunciando coisas ininteligíveis.
            Repentinamente, uma mosca faminta, enorme, pousa no prato de Lucimara.
            Os olhos do velho, de rato, brilham de excitamento.
A moça retorna à mesa; a mosca alça voo rápido.
            Arzinho sarcástico, o velho diz:
            – Você viu?
            – O quê, papai?
            – A mosca. Lambeu sua gororoba aí e deu no pé.
            Lucimara faz uma careta, sentindo o estômago embrulhar.
            O velho desfere uma gargalhada:
            – Come, menina, come!
            – Pare com isso, papai. Não vou mais comer.
            Os dois ficam um instante em silêncio.
Depois o velho volta a falar:
            – Hoje é o aniversário de sua mãe, não é mesmo?
            – É, papai.
            – Quantos anos, hem?
            – O senhor devia saber.
            – Vai fazer um bolo bem bonito para ela, não vai?
            – Não... Não vou.
            – Mas por que, filha? Por quê?
            – Porque mamãe está morta!
            O velho arregala os olhos, leva a mão ao peito:
            – Morta?!
            – Sim, papai. O senhor a matou!
            – Não!
            Aí o velho desembesta a chorar:
            – Não... Eu não a matei, juro por Deus!
            Lucimara acerca-se dele, faz um pequeno carinho em seus cabelos ralos.
            E então o abraça, entre lágrimas:
            – Droga, papai, por que nunca consegue se lembrar?
            E, em seguida, esbofeteando-o:
–Por que, por que, seu desgraçado?