quinta-feira, 29 de novembro de 2018

FORA DE HORA


Fui descendo a rua, fora de hora, como quem não quer nada.
Encontrei alguns vagabundos, mas eles apenas me olharam, acendendo seus cigarros de maconha, seus cigarros de crack, e apagando suas vidas miseráveis.
Nenhum deles ousaria mexer comigo.
Deviam saber quem eu quem eu era, e o que eu poderia fazer com eles, caso mexessem comigo.
Por isso apenas me olhavam, enquanto eu descia a rua, sob a minha capa preta, desviando da lixarada e dos canais de esgoto fétido.
Numa esquina, uma prostituta fez um gesto me chamando, sorriu, com certeza era nova por ali, ainda não sabia quem eu era.
Parei um instante e a encarei. Inocente, ela continuava sorrindo. Joguei meu cigarro no esgoto e passei adiante.
Quando dei as costas, a mulher disse um palavrão, me chamou de boiola.
Não olhei para trás.
Mais adiante, tropecei num bêbado na porta de uma espelunca.
Resolvi entrar na espelunca.
Dois homens jogavam sinuca, um terceiro bebia uma cerveja, sozinho numa mesa. Todos me ignoraram.
O dono do bar cochilava no balcão. Levantou a cabeça quando pressentiu minha aproximação. Sorriu, bocejando.
Pedi uma dose de conhaque.
Paguei, e saí da espelunca.
Caminhei duzentos metros além, e, num giro rápido, comecei a fazer o percurso de volta.
Entrei novamente na espelunca.
Os três homens me ignoraram novamente.
Pedi outra dose de conhaque. Paguei e fui embora.
O fedor do lixo na calçada me provocava náuseas.
Queria chegar logo para casa, aquela súbita vontade de escrever, a história se delineando na minha cabeça.
Não escrevia uma linha há meses, e agora parecia que a história vinha completa, um romance policial, coisa boa. Um sucesso. Outro grande sucesso!
Meu editor ficaria feliz, meus leitores ficariam felizes, o mundo inteiro ficaria feliz.
Eu poderia enfim tirar umas férias, passar uns dias ensolarados na praia com Maya, ela vivia reclamando que eu não saía mais...
Pobre Maya, será que ela não entendia?
Mas agora tudo daria certo.
Maya também ficaria feliz.
Finalmente eu tinha uma nova história para contar. Não podia desperdiçar aquele momento. Por isso apressei o passo. Cheguei mesmo a correr um pouco.
Mudei de calçada, mesmo assim a prostituta me notou. Fez um gesto, me chamando.
Depois gritou boiola.
Fiquei com raiva, mas não parei.
Não queria nada, nada. Só escrever. Escrever.
Uma das minhas personagens com certeza seria uma prostituta, e ela seria para sempre prisioneira do meu livro; uma prostituta sortuda, que surpreendentemente sairia ilesa na minha história, numa noite fedorenta a lixo, esgoto e morte...
Então apressei o passo. Corri.


terça-feira, 4 de setembro de 2018

OSMARINA


– Venha cá, minha nega!
            A empregada, passando por longe:
            – Olhe o respeito, seu Evandir. Conto pra sua filha...
            – Conta nada, conta nada!
            – O senhor não duvide. Dona Marce...!
            – Psiu! Não seja tola.
            – ...
– Vá pegar um copo dágua pra mim, vá...

...

– O diabo do velho continua me atazanando...
– E tu?
– Quê que tem eu?
– O que vai fazer?
– Conto pra filha dele?
– Ela vai acreditar? Não vai te despedir?
– Sei não, mãe. Juro que não sei.

...

– Osmarina.
– Pois não, dona Marcela.
– Sente-se aqui, quero falar com você.
– Foi o prato que eu quebrei de manhã?
– Não. É outra coisa. Escute.

...

– Tô passada, mãe.
– O velho aprontou de novo?
– A dona Marcela quer que eu me junte...
– Se junte?
– É, mãe. Com o velho.
– Que negócio é esse?!
– E eu sei, mãe!
– Tu aceitou?
– Deus me livre!
– Se eu fosse tu, aceitava.
– Mãe!

...

– O velho me despachou, mãe.
– Depois de uma semana? Como assim?
– Disse que eu não sirvo pra ele...
– Não serve, como?
– Ah, mãe! Ele quer umas coisas...
– Que coisas, menina?
– Umas coisas esquisitas, mãe...
– E agora?
– Vou continuar lá, mas só trabalhando mesmo.

...


– Dona Marcela, amanhã não venho...
– Hem?
– Não vou mais trabalhar aqui...
– Algum problema?
– Nenhum, dona Marcela.
– Está bem, você que sabe.

...

– Que cara é essa, Osmarina?
– Me demiti, mãe. O velho nem me olhava mais...
– Não tô te entendendo, criatura.
– Eu sinto falta, mãe, sei lá.
– Falta do quê?
– Da danação do velho, mãe!
– !
– Acho que me apaixonei. Quero morrer, mãe!