terça-feira, 25 de outubro de 2011

ERA MESMO UMA VEZ







Príncipe
gartic.uol.com.br


Hoje, quem me vê não acredita que eu já morei na beira do rio...
Mas eu já morei, sim!
Vivi alguns anos lá.
E eu até que gostava.
Apesar dos pesares, não dá para negar que viver ali tinha seu lado bom...
A vida que eu levo agora é bem diferente!
Moro num grande castelo, onde tenho tudo que é possível o dinheiro comprar.
Mas não é só isso – sou também um homem muito feliz.
E em breve serei muito mais, já que o meu casamento está marcado para daqui a alguns dias.
Minha futura rainha é uma moça linda.
Ela tem um coração de ouro – e posso dizer que ela é o melhor presente que já ganhei!
Se hoje levo essa vida de luxo e felicidade, é a ela que devo tudo isso...
  Às vezes, no entanto, ainda me pego pensando na minha vida de outrora...
Sinto falta dos meus amigos lá da beira do rio, e vez por outra dou uma passadinha por lá para vê-los – embora a gente tenha se distanciado muito e não se entenda mais do jeito que a gente se entendia...
Eu compreendo, sei que as coisas mudaram muito entre nós, que não dá mais para ser como era antigamente...
Ah!... Mas que delícia que é andar descalço na areia do rio, ou sobre os pequenos arbustos da margem!...
Tem dias que eu chego mesmo a mergulhar um pouco, lembrando os dias passados – aquele contato direto com a natureza, aquela vidinha sem preocupações...
Era  tudo tão bom... É tudo tão bom!
Volto para o palácio um pouco triste, mas aí vejo minha noiva me esperando com aquele sorriso maravilhoso e fico feliz outra vez.
E eu e minha futura rainha nos abraçamos e nos beijamos...
E o que me mais me alegra é saber que seu beijo continua igualzinho como quando ela me beijou pela primeira vez, lá na beira do rio...  
E foi então que, num passe de mágica, eu virei esse príncipe charmosão que agora sou!
Eu, que era apenas um sapo cururu...

domingo, 23 de outubro de 2011

GUARDA-CHUVA III


Aqui em casa, tá sendo muito difícil aceitar a morte de Leo. Pra nós, ele era como um membro da família. Anteontem mesmo, domingo, ele teve aqui em casa, estudando Matemática comigo. Saiu daqui por volta das 8:20. Chovia forte, e minha mãe ainda insistiu pra ele dormir com a gente, mas ele disse que não podia. “O Rico tá me esperando, sabe como é...”
Rico é o gato dele. É uma gracinha, apesar de ter uma mania pra lá de esquisita. Morre de medo de guarda-chuva preto aberto. É ver um e logo dá no pé. Uma vez eu falei pro Leo que talvez o amiguinho dele tivesse medo de morcegos e achasse que guarda-chuva fosse um morcegão. Não sei de onde tirei essa idéia, mas ela tava completamente equivocada. O Leo me contou que Rico até brincava com os morcegos no quintal, de tardinha. Eu mesma pude ver isso, certa vez. Sim, sim – às vezes eu também ia à casa de Leo pra estudar, ver vídeo, conversar. Os vizinhos dele pensavam que a gente fosse namorados. Mas não, éramos apenas amigos. Grandes amigos, apesar de nos conhecermos há bem pouco tempo – havíamos nos conhecido na faculdade.
O Leo era uma pessoa incrível. Contávamos tudo um pro outro. Ou quase tudo... Eu desconfiava que ele fosse gay, mas nunca tive coragem de perguntar isso a ele. Teve uma vez, uma única vez, que ele me perguntou se eu tinha coragem de ficar com mulher e eu disse que não. E revidei a pergunta: “E você, Leo, teria coragem de ficar com um homem?” Ele sorriu um tanto sem graça e disse: “Não.” Eu até brinquei: “Não ficaria... ou não sabe se ficaria?” Ele me deu um tapinha nas costas. “Claro que não, Vera!”, disse ele. E completou: “Mas nada contra, viu, amiga?” Sorrimos juntos, e mudamos de assunto. E nunca mais voltamos àquela conversa...
Domingo à noite, quando Leo estava de saída, ele me olhou de um jeito estranho, que não consigo explicar. Não sei por que tive essa impressão. Talvez tenha sido um presságio, sei lá... Acho que Leo notou que eu havia percebido alguma coisa, pois tratou logo de abrir o guarda-chuva que eu lhe emprestara, disse “bye” e mergulhou de vez no aguaceiro pra pegar a condução. Esperei que ele me ligasse quando chegasse em casa, mas o safado não ligou. Decerto tava ocupado demais colocando leitinho e biscoitinho pro Riquinho dele...
E agora meu amigo está morto! É duro acreditar que Leo se matou, logo ele que, apesar das dores, das perdas na vida, tinha um dos sorrisos mais luminosos que já conheci. Mas as coisas são assim mesmo, não é? Ninguém sabe o que de fato se passa na cabeça das outras pessoas, mesmo aquelas mais próximas de você...
Eu soube do acontecido só agora de manhã, depois que liguei pruma vizinha perguntando se ela sabia do Leo, pois desde a noite anterior que tentava ligar pra ele pra saber por que ele perdera a prova de Matemática, e o telefone só dava ocupado. A vizinha disse: “Vera, minha filha, aconteceu uma tragédia! O Leo se enforcou. De manhã cedo eu fui lá deixar um pedaço de bolo pra ele, chamei, chamei e nada. Vi que a porta tava só encostada, empurrei e foi aí que avistei o Leo pendurado na corda. Foi horrível, minha filha, foi horrível!”, terminou a vizinha resvalando no choro. Eu também comecei a chorar, e quando consegui me controlar, perguntei se a tia do Leo (sua única família), que morava lá na Zona Sul e raramente aparecia pra visitar ele, já tava sabendo. “Eu liguei e ela já tá vindo pra cá”, respondeu dona Aparecida. Depois ainda liguei mais duas ou três vezes pra ela. A velhinha, como eu, tá muito abalada. Pra ela, o Leo era um filho, “o filho que eu não tive!”, como ela própria dizia, coitada...

...

É quase meio-dia e eu tô saindo de casa com meus pais. A gente tá indo pro velório.
Tô muito confusa, juro que não sei o que pensar de tudo isso!
Tenho um entalo na garganta, e pergunto pro meu Pai se dá pra dirigir mais rápido. Ele me devolve um sorriso compreensivo e acelera, ao mesmo tempo em que Mamãe me abraça, amparando minhas lágrimas que recomeçam a cair...

sábado, 22 de outubro de 2011

A COR DA NOITE




Sombra da noite
nocaminhodasemocoes.blogspot.com


Eu era apenas um frangote quando minha professora de Educação Artística disse (se bem me lembro!) que o branco era a REUNIÃO de todas as cores, e que o preto era justamente a AUSÊNCIA delas.
Pra mim, naquele momento, isso não fazia a menor diferença: eu não gostava de arte, não gostava daquela professora idiota, eu não gostava de nada!
Mais tarde, já adulto, me tornei um animal noturno...
(Um notívago – é assim que se fala, não é?)
Por favor, não me julgue, pois eu era apenas um AUSENTE de mim mesmo. Minha prisão não tinha grades – e essa é a pior. E lá no meio desse tumulto todo, somente o preto alucinante da noite conseguia REUNIR os cacos menorzinhos do meu... do meu – existe palavra correta pra substituir “coração”?
Eu não sei, nem lembro a última vez que peguei num dicionário... Mas, pra falar a verdade, agora até agradeço não saber!
O que eu sei bem é que me esgueirava rápido por entre as sombras, disfarçado na escuridão. Ia rápido e sozinho – e às vezes em bando. Mas sempre sem medo; sempre perigosamente...
Pois foi assim – de perigo em perigo – que uma noite me deparei com aquela antiga professora.
Quando vi a talzinha no bar, não tive logo a certeza se era ela mesma ou não. Tava velha e feia, e bebia solitária no pé do balcão. Me aproximei e fiquei observando por algum tempo, antes de falar com ela:
– Dona Carmem?
Ele me olhou surpresa, e bastante séria:
– Quem é você?
– Fui seu aluno na sexta série...
– É?
– A senhora dava arte. Falava das cores primárias, secundárias..., daquele pintor estrangeiro que um dia cortou a própria orelha...
Ela bebeu uma dose.
– A senhora lembra de mim?
Ela respondeu com ironia:
– Olha, se eu fosse me lembrar de cada aluno que eu tive!
E lascou uma gargalhada ferina bem no meio da minha testa...
Ia mandar ela se foder, ela e uma gentalha que ficou me olhando, mas fui pro outro lado do balcão e pedi uma cerveja. Acabei o mais rápido que pude, sempre olhando atravessado pra megera, e saí da espelunca com um incontrolável desejo de vingança.
Esperei uma eternidade lá fora, mão na cintura, nervosa, acariciando o meu tresoitão...
Quando a professora – cambaleando – deixou o bar, eu segui ela pela calçada.
Num trecho mais escuro, agarrei ela por trás e cochichei no seu ouvido:
– A senhora não lembra mesmo de mim? Do seu aluninho?
– Não...
– Tem certeza, vagabunda?
– Tenho...
Disparei três vezes – pra ela aprender a lição.

quarta-feira, 12 de outubro de 2011

GUARDA-

        
Guarda-Chuvas
imotion.com.br
      Meu gato tem um medo pra lá de esquisito. É avistar um guarda-chuva preto fechado e ele nem liga; mas se o guarda-chuva estiver aberto, meu Deus!, o bichano eriça o pelo e sai correndo em fuga desesperada...
     Criei meu gato desde novinho e, que eu me lembre, aqui em casa ele não teve nenhuma experiência traumática com guarda-chuvas. Então, como explicar esse seu medo absurdo?
         Contei isso pra minha melhor amiga e ela disse:
       “Guarda-chuva preto se parece com morcego, não parece? Vai ver, Leo, o teu gato tem medo de morcegos e acha que guarda-chuva é um morcegão!”
         Achei que Vera estivesse me zoando, mas bem que ela poderia ter razão. Um fim de tarde, levei Rico pro quintal. No céu, competindo com as primeiras estrelas, os morcegos esvoaçavam pra lá e pra cá. Alguns voavam tão baixo que, por pouco, um deles não me acerta a cara...
         Soltei Rico bem no meio do quintal. Foi se ver livre e o danado começou a brincar com os morcegos. Ficava entocado e, quando um incauto se aventurava num voo rasante, ele dava um salto espetacular e quase capturava o bicho, que saía doido rumo às alturas.
         Sorri e voltei pra dentro de casa. Estava no telefone contando pra minha amiga o que acabara de descobrir, quando o gato entrou na sala carregando um morcego na boca. O meu susto foi tão grande que deixei cair o telefone no sofá...
         Vociferei:
“Sai daqui, Rico, leva essa porcaria lá pra fora, já!”
Como se fosse de propósito, o gato soltou o morcego bem na minha frente e, com toda a tranquilidade do mundo, foi na direção da cozinha...
Eu peguei o telefone. Do outro lado, Vera, aflita, perguntava o que estava acontecendo. Eu relatei o ocorrido e damos boas gargalhadas juntos.
Desliguei e corri à cozinha pra pegar a pá de lixo pra recolher o morcego. Rico bebia o leite dele tranquilamente. Brinquei com ele:
“Daqui a pouco vou te mostrar o guarda-chuva pra você pagar o susto que me deu, viu, seu malvadinho?”
Quando voltei à sala, nem sinal do morcego!...
Fui ver atrás do sofá, e mal o puxei, o diacho saiu voando lá de trás e passou raspando na minha orelha, sumindo porta afora...
“Está decidido, pronto!”, pensei. “O Rico vai ter o seu guarda-chuva hoje!”
E, com o coração ainda acelerado, tratei de pôr em prática minha pequena vingança...


-CHUVA

Chego em casa às 9, debaixo duma bruta chuva. Mal entro, meu gato vem se esfregar nas minhas pernas, mas se afasta discretamente ao perceber que estou todo encharcado. O guarda-chuva que minha amiga me emprestara pouco havia adiantado...
Deixo o guarda-chuva na cozinha e vou pro quarto, me trocar; depois, abro a porta do quintal e jogo a roupa molhada dentro dum balde qualquer, ao lado do tanque. Lavarei pela manhã, antes de ir pro trabalho – se der tempo.
Meu gato reaparece. Ponho leite pra ele na tigelinha e esquento comida pra mim. Janto pensando na difícil prova de Matemática de amanhã. Foi por isso que passei duas horas na casa de Vera, estudando. Ela é craque com os números. E é minha melhor amiga também!
O guarda-chuva está ali mesmo, em pé num canto. Meu gato bebe o seu leitinho muitíssimo próximo a ele. Que está fechado, evidentemente. Se estivesse aberto, meu gato já estaria bem longe. Ele tem verdadeiro pavor de guarda-chuva preto aberto. Eu juro por Deus que não consigo entender de onde vem esse seu medo bobo...
Depois de jantar, vou ver televisão. Rico – é este o nome do meu bichano – pula logo no meu colo e fica ronronando.
A chuva finalmente passou. Vejo um pedaço de um programa sobre a vida selvagem na Amazônia e em seguida vou dormir, não sem antes ir à cozinha e abrir o guarda-chuva pra escorrer a água.
Meu gato havia me seguido e, ao ver o guarda-chuva abrindo, desaparece em fuga desesperada... Uma vez Vera me disse que Rico devia ter medo de morcego e, como guarda-chuva preto se parece com morcego, podia achar que fosse um morcegão.
Nada disso. Rico às vezes até brinca com os morcegos lá no quintal, no fim da tarde. Uma vez até capturou um deles – que sem dúvida se afoitara num voo rasante –, e o trouxe pra dentro de casa, o danado.
Me deito sorrindo ao lembrar do meu susto diante do episódio, mas de repente, ao me cobrir com o lençol, penso com profunda tristeza no guarda-chuva; não o que está aberto lá na cozinha, simples guarda-chuvinha inofensivo, mas o outro – de fato assustador! –, que talvez esteja começando a se abrir dentro de mim...