sábado, 30 de outubro de 2010

NESTA DATA QUERIDA

Lorenzo. É este meu nome. Ontem foi meu aniversário. Trinta e dois anos. Tia fez um bolo pra mim. Também me comprou um presente. Uma camiseta amarela. Comi o bolo. Ri. Rimos. Aí às nove me arrumei. Botei perfume. Falei pra Tia que ia sair um pouco. Não volte muito tarde. Sim. Eu me preocupo. Sim. Então saio. Sem destino. Quem sabe pare na praia. Ou num prostíbulo. O tempo está abafado. O barulho infernal. As luzes me cegam. Tenho sede. Entro num bar. Peço uma cerveja. E outra. E mais outra. E todas as outras. O mundo começa a girar. Pago a conta. Vou levantar e tropeço. Derrubo a cadeira. O pessoal fica me olhando. Alguém ri abafado. Não ligo. Hoje é meu aniversário. Tenho o direito. Vão todos se foder. Eu devo gritar. Mas não grito. Não grito. Vão todos se foder. Todos. É. Eu devo. Mas saio e não grito. Lá fora chove fininho. Sigo pra casa. Às vezes erro o passo. Bato num muro. Ralo o braço. O sangue vem. Não é muito. Só um tiquinho. Quase nada. Um leve ardor. Olho o muro. Muro. Murro. Murro no muro. Mas não. Beijo. Beijo no muro. Não sei por quê. Não sei. Não faço a mínima. Deve ser a idade. O tempo nos enfraquece. Nos desarma. Enlouquece. Há muito ando assim. Diferente. Um dia desses até chorei. Uma cena. A novela era das oito. Mãe e filho. Reencontro. Disfarcei. Tia podia ver. Acho que ela viu. Tia vê tudo. Tudinho. Tudíssimo. A hora que saio. Que chego. Quando vou à cozinha no meio da noite. Ao banheiro na madrugada. Não me chateio. Mãezona. Tudo é pra mim. Carinho. Dinheiro. Macarrão com almôndegas. Sempre foi. Assim desde que Mãe fugiu. Vadia. Eu tinha só cinco. Pai nunca conheci. Eu bem que perguntava. Mas Tia desconversava. Aos poucos fui esquecendo. Agora tanto faz. Pro inferno Pai. Mãe. Aquele gordo que me batia na escola. O pessoal do bar. O muro pro inferno. O muro que me feriu. Que beijei como se fosse uma mulher. Como se fosse Tia. Eu sempre a beijo. No rosto. Nas mãos. Nos cabelos brancos. Certa vez a beijei na boca. Eu era muito pequeno. Ela levou um baita susto. Sorriu. Mas disse que eu não fizesse mais. Perguntei por quê. Ela falou que isso não podia. Beijar Tia não. Namorada podia. Quando eu crescesse. Ficasse rapaz. Daí nunca mais a beijei na boca. Mas outros beijos eu beijo. Os que falei. O que mais gosto é na testa. Nos cabelos não tanto. Fica cabelo na boca. Incomoda. Tenho que cuspir. Detesto cuspir. Tenho nojo. E principalmente lembro. O falecido vivia cuspindo. Enchia a casa de cuspe. A sala. A cozinha. O banheiro. O corredor. Cuspiu até minha mão. E ainda riu. Acho que foi de propósito. Ele disse que não. Tia também disse. Mas eu não senti firmeza. O traste nunca gostou de mim. Me fazia de escravo. Pedia água. Café. Pedia o fósforo pro cigarro. Isso tudo sentado. Os pés trepados no sofá. Na frente da televisão. Pense. Programa era só o dele. A gente não tinha vez. Nem Tia tinha. Não entendo como ela se casou com ele. Uma mulher tão boa. Tão bonita. Hoje ela envelheceu. É verdade. Mas ainda é bonita. Pelo menos eu acho. Acho mesmo. Eu a amo demais. Beijei minha primeira namorada e foi nela que pensei. Fechei bem os olhos. Me concentrei na menina. Era pecado. Não podia. Com Tia não. Depois beijei outras garotas. Várias. Um monte delas. Era o maior beijoqueiro da rua. Da cidade. Talvez mais. Quem sabe. Os meus amigos queriam meu segredo. Falava que não tinha segredo. E não tinha mesmo. Eu beijava e só. Mas elas gostavam. Todas. Tia foi a única que não gostou. A única. Mas ela não era uma qualquer. Era Minha Tia. Tia não podia. Qualquer outra sim. Tia não. Nem mãe. Nem irmã. Não sei. A chuva engrossou. Vou chegar em casa encharcado. Minha mãe. Se me esbarrar Tia não vai gostar. Assim você se resfria menino. Ainda sou seu menino. Sempre serei. Mas não sou mais um menino. Eu sei. Ontem fiz trinta e dois. Não sou mais um garoto. Não sou. Não sou. Agora sou um homem. Um homem. Grito. Um cachorro late. Bato no peito. Abro o portão. A porta. Acendo a luz. Vou pro quarto. Dispo a roupa molhada. Jogo tudo no chão. Me deito na cama. Nuzinho. É bom. Muito bom. Me cubro dos pés à cabeça. Criança no ventre. Menino. Homem. Tia está roncando. Dá pra ouvir. Mas amanhã ela sabe a hora que cheguei. Ela vai saber. Como eu não sei. Ela sabe de tudo. De tudo mesmo. Menos de uma coisa. Do que eu fiz e nunca contei pra ela. Pra ninguém. Nem vou contar. Pra ela não. É melhor que ela não saiba. Quantos anos passados? Muitos. Quinze. Talvez Vinte. Não sei. Não sei. Não quero saber. Não preciso. Não. Eu não queria matar. Ele bem que merecia morrer. Mas eu não queria matar. Só queria fazer ele sofrer um pouco. Sentir a dor. Ele bem que merecia. Me fazia de capacho. A televisão era só dele. O cuspe pelo chão. Minha mão. Ah. Isso não. Isso ele não podia. Lavei minha mão durante um mês. Lavava e lavava. A toda hora. Principalmente antes de comer. E foi lavando que tive a ideia. Uma noite entro na despensa. Entro. Sorrateiramente. Pego o pacote. Suo. Minhas mãos tremem. Tia que comprou o chumbinho. Sim. O rato era uma vez. Coitado. Tiro um tanto razoável de bolinhas. Enrolo numa folha de caderno. Saio da despensa. Depressa. Me tranco no quarto. Trituro as bolinhas com um estilete. Eu quero. Ele merece. Tenho medo. Ora. Um rato. Isso que ele é. Não posso desistir. Voltar atrás. Miau. Sou gatinho mau. Agora é esperar. Um dia passou. Uma semana passou. Um mês se passou. O embrulhinho sempre no meu bolso. Demorou. Mas uma noite pus na sopa dele. Foi rápido. Inesperado. Titia o chamou no banheiro. Acho que uma rã. Ou víbora. Sei lá. Eu aproveitei. Ele voltou. Recomeçou a comer. Parecia um porco. Ele era um porco. Fiquei esperando. Esperando. Horas. Séculos. Minutos. Esperando. Nervoso. Ansioso. Morre desgraçado. Morre! E então começou. Tudo aconteceu. Eu tive medo. Não queria olhar. Mas não conseguia tirar os olhos. Tia gritava. Joaquim! Joaquim! Ele espumava. Os vizinhos acudiram. Não houve jeito. Logo ele estava teso. Os olhos esbugalhados. Mortinho. Pra todos foi coração. Ao enterro não fui. Pedi pra não ir. Tia me abraçou. Lágrimas rolaram. As dela. Claro que eu ria por dentro. Gargalhava mesmo. O meu suplício tinha acabado. Yes. Era hora de comemorar. Ai. Ledo engano. Durante meses não consegui dormir. Era só fechar os olhos e começava. Aqueles olhos horríveis. Aquela espuma me cobrindo. Me melando feito o cuspe na mão. Acordava em pânico. Os pés gelados. O coração saindo pela boca. Sofri um bocado. Via televisão pra não dormir. Meus olhos lacrimejavam de sono. Tia ralhava. Vai dormir menino. Nessa hora televisão só tem o que não presta. Desliga. Amanhã você tem aula. Eu desligava. Ia pra a cama. Pra forca. Pra guilhotina. À força. Meu Deus. Deus. Quero dormir e não sonhar. Não sonhar. Não sonhar. Me ajude. Me perdoe. Eu não queria. Juro que não queria. Meu Deus. Acredite. Acredite em mim. Acredite neste pecador. Me dê a paz. Um sono tranquilo. Por favor. Eu rezo dez ave-marias. Cinquenta. Cem. Cem pai-nossos. Meu Senhor. Eu sei que És bom. Que perdoas setenta vezes sete. Imploro Seu perdão. Quero dormir. Não quero sonhar. É tudo que quero. Tudo. Por favor. Por favor Senhor. Rezava assim mesmo. Desesperado. Noite após noite. Então finalmente consegui. Dormi a noite inteirinha. Estou feliz assim. Sem olhos pra me olhar. Sem espuma. Sem cuspe pra me sujar. Vou dormir. Já é tão tarde. Tia parou de roncar. Amanhã quero beijar ela. Na testa. Nas bochechas. Até nos cabelos. Na boca não. Ela não deixa. Minha velhinha. Temo que ela morra dormindo. Não. Deus há proteger ela. Ele vai. Sei que vai. Assim como me protegeu. Assim como me protege. Assim como me protegerá. Boa noite. Tenho sono. Boa noite. Tenho sono. Boa noite. Boa noite. Ontem foi minha data querida. Amanhã eu começo as ave-marias. Os pai-nossos. Cem. Sem sonhos. Boa noite.

CASUALIDADE

Ao entrar naquele bar e pedir uma cerveja e uma dose de cachaça, Danilo transpirava estresse por todos os lados. Acabara de discutir terrivelmente com a mulher. Motivo da briga: Pedrinho – seu enteado – um pirralho de treze anos que volta e meia vivia a infernizar a sua vida. Por causa dele, uma porção de vezes ameaçara largar a viúva e se mandar no oco do mundo; mas desistia ao considerar que ali tinha todas as regalias possíveis – incluindo grana fácil para torrar em futilidades e sexo quente e gostoso para homem nenhum botar defeito. Verdade verdadeira: Jacira era um furacão na cama! Danilo a havia conhecido numa casa de forró. Beberam e dançaram a noite toda – e na semana seguinte ele se mudou para a casa dela. (Emigrante nordestino, até então vivera com a irmã e ajudava o cunhado numa lojinha de artigos esportivos). Pois bem: mandou tudo para o beleléu e se socou de mala e cuia na casa da coroa boazuda – e isso já fazia quase um ano! No momento trabalhava meio expediente numa padaria, mas andava pensando seriamente em largar aquele serviço mixuruca de mão. A pensão do falecido, mais o dinheiro das duas casas que Jacira mantinha alugadas, era suficiente para suprir as suas necessidades básicas de garotão da hora... Ele já tinha vinte e  nove anos nos couros, mas era assim mesmo que Danilo se auto-proclamava: um garotão da hora!
– Você é um cara de sorte, Danilão! – diziam os amigos.
Ele rebatia:
– Vocês não sabem a peste que é o filho dela... E a velha é ciumenta que nem o demônio!
Os amigos davam-lhe tapinhas nas costas:
– Isso é o de menos, cara! Isso é o de menos...
Agora Danilo achava-se ali, encostado no balcão de um barzinho à-toa... Quando pediu a cerveja e a dose de cachaça, o dono do estabelecimento o mediu de cima a baixo. Danilo percebeu, mas ficou quieto. Não queria discutir mais com ninguém naquela noite. Uma briga só já bastava.
Virou a pinga de um gole. O álcool desceu rasgando-lhe a garganta, quis tossir. Tossiu abafado, disfarçando: o bar regurgitava – e ele não queria que os outros pensassem que ele era um cachaceiro principiante.
De fato, Danilo nunca fora um bom bebedor de pinga. A danada sempre descia lacerando tudo – sem contar que ele se embriagava fácil, fácil. Cerveja, não. Podia beber várias, o efeito era lento e raramente o deixava de porre. A pinga, ao contrário... E não era preciso muita, não: bastavam cinco ou seis doses para fazê-lo rastejar pelo chão. Uma vez, chegara a tirar toda a roupa num churrasco na casa de um amigo. Por sorte, as mulheres tinham acabado de ir à cozinha pegar um pouco de carne, e as crianças jogavam videogame na sala. Ninguém percebeu nada. Os amigos o vestiram às pressas, apesar da resistência que ele oferecia. Quando Pedro, dias depois, lhe contou o sucedido, Danilo ficou muito impressionado e jurou nunca mais botar cachaça na boca.
Isso fazia apenas dois meses. Agora ele enchia a cara encostado no balcão. Já bebera uma dose e três cervejas. Sentia-se bem – e quis pedir outra dose. “É a última...” – pensou sorrindo. “Dessa vez não vou deixar que a safada me noucateie, não!”
Secou a cerveja e pediu a dose e outra cerveja. O dono do bar, enquanto servia, escolheu bem as palavras para falar:
– Moço, você não tem medo de se embriagar, não?
Danilo esteve a pique de soltar uma grosseria – talvez mandar o sujeito tomar naquele lugar – mas disse apenas:
– Tô acostumado.
E ficou sério. O dono do bar, encabulado, foi atender uma cliente que o chamava insistentemente. Ela falou qualquer coisa no ouvido do homem e ele, de cara amarrada, fez um gesto indicando Danilo com a cabeça. Danilo percebeu o gesto – bebeu a dose de uma lapada e ficou encarando a mulher. Ela parecia ter uns vinte anos, era loura e um tanto gordinha; mas em compensação tinha uma boca tão carnuda, tão vermelha e tão brilhante que – por alguns segundos – Danilo fechou os olhos e se imaginou sorvendo aquela boca deliciosa como se devorasse um pedaçinho da maçã que Adão comeu no paraíso...
Quando abriu os olhos, levou um baita susto: diante dele, a boca exibia o mais lindo dos sorrisos...
– Oi... – ciciou a moça.
Danilo também sorriu:
– Oi...
Ela, então, puxou um tamborete para perto dele e sentou-se; depois, olhando para as próprias unhas (longas e vermelhas como sua boca), incorporou a menina tímida e perguntou:
– Você... me paga uma bebida?
Danilo, delicadamente, segurou-lhe pelo queixo e a fez olhar para si:
– Pago, sim, meu anjo... Mas vai ter que me contar o que você perguntou ao carinha ali sobre mim!
Ela desvencilhou-se dele:
– Eu te conto, sim... Mas primeiro a bebida!
– Tá bem. O que você quer beber?
– De início, uma pinga! – exclamou ela após breve hesitação. – Depois tomo uma cervejinha com você...
Achando aquilo inusitado – e divertido –, Danilo mandou botar uma pinga “pra moça”. E, empolgado, completou:
– E vê outra pra mim também!
Dessa vez o dono do bar serviu a bebida sem olhar nem falar nada.
– Vamos brindar! – propôs a moça.
– Brindar o quê? – inquiriu Danilo.
– Aos amantes da cachaça! – e ela levantou o copo.
Brindaram ruidosamente. Algumas pessoas próximas olharam para eles. O dono do bar também.
Assim que entornaram a cachaça e Danilo pousou o copo no balcão, a moça falou:
– E aí, ainda quer saber o que perguntei ao cara do bar?
Contente porque, pela primeira vez em sua vida, a bebida não descera rasgando nem lhe dera vontade de tossir, Danilo replicou:
– Deixa pra lá... Melhor me falar o seu nome. O meu é Danilo!
– Meu nome é Anelise, mas gosto que me chamem de Anne, com dois “enes”...
– Prefiro Anelise! – disparou Danilo. – Se você me permite, é claro...
– Tudo bem, Danilo, hoje você pode me chamar do que quiser! Tô feliz à beça: é meu aniversário...
– Opa, meus parabéns! – Danilo tomou-lhe as mãos efusivamente. – Isso merece mais uma cerveja geladinha... Ei!
Obedecendo ao clássico gesto do indicador empinado, o dono do bar trouxe outra cerveja. E, olhando para ele e depois para Anelise, informou:
– É a última. Vou fechar.
– Que horas são? – perguntou Danilo.
Foi Anelise quem respondeu, consultando o seu reloginho de pulseira amarela:
– Quase duas!
– Caramba, o tempo voa, né?! Achava que ainda não fosse meia-noite...
Sorveram a cerveja entre risos e palavrinhas bobas. A moça sugeriu:
– Vamos dar uma volta por aí?
Danilo, constrangido, balbuciou:
– Eu... Eu tô a pé, sabe?...
– Tem nada, não; tô mesmo precisando caminhar um pouco... Vamos!
Danilo puxou a carteira e pagou a conta. Ao devolver o troco, o dono do bar chispou para a moça:
– Vê se não chega só de manhã, viu, dona Elizângela!
Estranhando aquilo, Danilo falou em tom grave:
– Alguém pode me contar o quê que tá havendo aqui?
Anelise o puxou pela mão e eles saíram rápido do bar.
Caminharam um instante em silêncio, até que Danilo estacou; cruzou os braços, encarando a garota:
– Sou todo ouvidos, dona Elizângela!
– Desculpe, Danilo. Meu nome verdadeiro é Elizângela... e aquele lá é meu padrasto – explicou-se Anelise. – Eu odeio ele! Acha que pode mandar em mim...
Danilo não teve jeito senão rir da coincidência: saíra de casa estressado com seu enteado e encontrara o refrigério justamente ao lado de uma... enteada! Que coisa louca; ironia do destino!
– Você tá rindo do quê? – Anelise quis saber.
Danilo então contou da briga com a mulher por causa do sacana do filho dela.
Elizâgela-Anelise o abraçou:
– Não esquenta, não, meu bem... Hoje a gente vai se divertir muito. Vamos lá na praia?
Danilo concordou. Passaram num barzinho, compraram algumas latas de cerveja, entraram numa van e – vinte minutos depois – estavam se beijando e se amassando na areia da praia deserta àquela hora da madrugada...

...

Danilo acordou com o sol nascendo. Demorou um pouco a reconhecer o lugar onde se encontrava.
Sentada ao seu lado, Elizângela (pura como nunca!) olhava o mar com a mesma serenidade daquelas águas sem fim...
– Olha lá! – gritou ela de repente apontando em certa direção.
– O que foi? – perguntou Danilo levantando-se com dificuldade.
– Tem uma mulher vindo furiosa pra cá... Será sua mulher?
– Xiiiii... É ela mesmo! E aquele careca ali do lado, não é seu padrasto, não?
– Pode apostar que sim... E agora, hem?
Sincronizados, os dois se entreolharam, sorriram e – desabando molemente sobre a areia – fingiram-se de mortos.

ROMANCE

| oãoj tinha 16 anos quando pôs na cabeça
que queria escrever 1 romance
1 GRANDE romance
| antes disso
ele não rabiscara sequer 1 conto ou poema
| mas gostava de LITERATURA
e lia com fervor tudo o que lhe caía nas mãos
não importava que gênero fosse
| ... oãoj se formou em publicidade
arrumou um bom emprego
casou com 1 amiga de infância e teve 2 filhos
1 menino CHAMADO Pedro
e 1 menina chamada Letícia
| o tempo passou
lugar-comum
| a ideia do romance crescia assustadoramente
inundava oãoj
| 1 noite
ao se deitar
ele disse para a esposa
“Maria
vou ARREGAÇAR as mangas e escrever de vez
o meu romance”
| “é isso aí
meu bem”
respondeu a mulher
contentíssima
| e para comemorar a magnitude daquele momento
eles fizeram AMOR como 2 adolescentes
|depois
agarradinhos
pegaram no sono
| lá fora começara a chover
| a madrugada
em seu vestido de CAUDA
vinha chegando distribuindo sussurros e perfumes

...

| até o final de sua vida
oãoj continuou tentando escrever o TAL romance
| jamais conseguiu
| Pedro
sim
(em memória do pai
agora
JOÃO???)

SURPRESA DE ANIVERSÁRIO

Ontem foi meu aniversário (ou niver como diz a garotada por aí!) MAS deixei pra comemorar somente hoje que é feriado... Convidei poucas pessoas: minha namorada, meu amigo Fred e dois colegas do escritório – o Paulinho e a Ana. Eles são noivos. Vão se casar daqui a quinze dias e eu sou padrinho.
Titia, coitada, tá toda atarefada: já preparou carne, fez um bolo de chocolate – o meu preferido – e agora vai sair pra comprar uns salgados. “Eu não demoro, meu filho!”, diz ela pegando o seu guarda-chuva amarelo que eu acho ridículo.
Que dia! A chuva que cai é fina, insistente; desde a madrugada que chove é já são nove horas. Os convidados chegarão às duas. Claro que eu queria mais cedo MAS Adriana disse só conseguira marcar na manicure à uma – então foi o jeito adiar... Ela é muito, muito vaidosa! Faz dois meses e meio que a gente namora. Nos conhecemos no supermercado onde ela é caixa. “Nossa, como você gosta de doces!”, disse ela sorrindo enquanto passava as minhas compras. Eu retribuí o sorriso e na hora de pagar, junto com o troco, ela me entregou um papelzinho com o seu telefone.
Agora tamos que é só felicidade! Pensei em me casar com ela junto com o Paulinho e a Ana MAS Titia falou que é cedo; o Fred também acha... Por mim eu casava e pronto. Tenho certeza de que Adriana é a mulher da minha vida!
Ligo o som e ponho uma música internacional. Busco um vinho tinto na geladeira. Me espreguiço no sofá. “Trinta e cinco anos! Trinta e cinco... MAS me sinto com dezesseis e hoje vou tomar todas!”, penso virando a metade do copo.
Ligeiro seco a garrafa.
Aí o telefone toca.
Deve ser Adriana, meu chuchuzinho, meu docinho de coco!
MAS não.
É do hospital: Titia foi atropelada e passa mal...

SONHAR PARA QUÊ?

De manhãzinha, falei à minha esposa do estranho sonho que eu tivera...
“Sonho é besteira, Miguel!”, disse ela com azedume.
Mais tranquilo, fui para o trabalho.
Lá, o João me esperava, aflito:
“Cara, fomos despedidos!”

...

Madrugada.
Bárbara e as crianças dormindo.
Silenciosamente abro a janela, pulo.
Sexto andar.
Uma viatura passa minutos depois e os policiais avistam meu corpo ensanguentado.
O porteiro do prédio, seu Gaspar, é quem faz o reconhecimento:
“Cristo Jesus, é o doutor Miguel!”
(O velho só me chamava assim: o doutor.)
Aí avisam Bárbara; ao me ver, ela entra em desespero; alguém a ampara.
O síndico aparece de roupão amarelo encardido.

...

Não há dúvida – estou morto.
Os moradores, já despertos e excitados pela tragédia, se comprimem ao meu redor na calçada.
Um sussurro:
“Esse Miguel... ou devia muito dinheiro ou tinha câncer ou foi traído pela mulher...”
A frase do meu sonho. A mesma!
Mas tudo é idêntico...
Um sonho, a esposa, a besteira, João, a demissão, a madrugada, a janela, o pulo, os policiais, o porteiro...
Igualzinho!
Exceto por um detalhe: no sonho, eu me chamava... Epidauro.
Eu, hem!
Ninguém merece um nome desses... Ninguém merece!

A AMEAÇA

O homem tinha mais ou menos a minha idade e sentou-se ao meu lado:
“Minha mulher me deixou!”, disse ele me encarando.
“E daí?”, pensei em responder; mas me contive e esperei...
Nervosamente, ele enfiou a mão no bolso do paletó, tirou a carteira, abriu e mostrou-me a foto de uma loira estonteante.
“Você a acha bonita?”
“É muito bonita, sim.”
“Casaria com ela?”
Eu sorri encabulado.
Ele guardou a carteira. Suspirou:
“Você ia se arrepender amargamente!”
Estávamos sentados num dos bancos da pracinha arborizada do Largo, que, como sempre, regurgitava; pessoas iam e vinham – formiguinhas loucas e estressadas.
Eu olhei para as altas janelas de um prédio.
Aí vi uma gigantesca nuvem branca que tomava conta do céu azul.
“Não é estranho?”, perguntei ao desconhecido.
Ele também tinha reparado na nuvem, mas se fez de desentendido:
“O quê? Minha mulher ter me deixado? Também acho!”
“Estou falando da nuvem!”, expliquei com ironia.
Ficamos em silêncio.
Pensei em me levantar e deixar o chato sozinho.
Mas me peguei dizendo:
“Conta aí, por que tua mulher te deixou?”
Ele limpou o suor do rosto na manga do paletó. Endireitou-se no banco:
“Porque eu era o marido perfeito. Por isso!”
“Ela também podia se achar a esposa perfeita, não acha?”
“Como assim?”
“Estou querendo dizer que talvez ela não te achasse tão perfeito assim.”
Ele ficou um instante pensativo. Depois sorriu com convicção:
“Ela achava, claro que achava!”
E apontou o céu:
“Está vendo aquela nuvem?”
Dessa vez fui eu que não entendi:
“O quê que tem a nuvem?”
“Ela se parece com minha esposa!”
Deixei que ele próprio se explicasse.
Passou um minuto. Dois. Dez. O horário do almoço estava acabando. Eu tinha que voltar para o trabalho.
“Preciso ir”, eu falei.
O estranho não respondeu. Seus olhos tinham grudado na nuvem e estavam marejando.
Levantei-me e, sem olhar uma única vez para trás, fui seguindo entre a multidão...
De repente, era como se eu não tivesse para onde ir!
Meus passos, incertos, me levaram a um barzinho. Pedi uma cerveja.
“Está vendo aquela nuvem, camarada?”, perguntei ao homenzinho perto de mim.
Ele olhou para o céu, franzindo as sobrancelhas. Tomou um golão e disse:
“Tomara que ela não caia em cima das nossas cabeças!”
Meu Deus...! Realmente, a nuvem parecia um pouco mais baixa...
Terminei minha cerveja e fui direto para casa.
À noite, peguei minha mulher e as crianças e voltei correndo para a casa (tão longínqua!) dos meus avós. Chorando feito um menino, abracei os velhinhos, beijei os velhinhos, cantei para os velhinhos...
Agora durmo sossegado.
Que venha o Juízo Final!...

FALSIDADE DA NOITE

À noite, todos os gatos e gatas são pardos.
E todas as conversas de amor, ridículas...
“Você me ama?”
“Amo.”           
“De verdade?”
“De verdade.”
“Então jura.”
“Juro.”
“Por quem?”
“Pelo nosso amor.”
“Assim não vale.”
“Por que não?”
“Porque não sei se existe.”
“A jura?”
“Não: o seu amor.”
“Claro que existe.”
“É isso que quero saber.”
“Quer uma prova?”
“Quero.”
“Taí. Pronto.”
“Um beijo?”
“Sim.”
“Apenas um beijo?”
“Apenas?”
“Um beijo não prova nada.”
“Não?”
“Não, não prova.”
“O que você quer?”
“Algo maior.”
“Quer transar?”
“Não é isso.”
“Eu não te entendo.”
“Não me entende?”
“Aonde você quer chegar?”
“Onde toda mulher gostaria.”
“Onde?”
“No coração do homem que ama.”
“Mas você está no meu.”
“Não sei.”
“Sabe.”
“Não sei, não.”
“Por que isso agora?”
“Medo de sofrer.”
“Não precisa ter medo.”
“Preciso.”
“Você não vai sofrer.”
“Promete?”
“Prometo.”
“Ai, me abraça.”
“Abraço.”
“Bem forte.”
“Muito forte.”
“Amor da minha vida.”
“Meu amor.”
Duas horas depois:
“Promete?”
“Prometo.”
“Ui.”
“Ai.”
A cama era outra, os braços eram outros.
A noite era a mesma, o cara o mesmo.
A falsidade idem.



        

COISAS DO OUTONO

Dos cinco homens que tivera em sua vida, dois haviam sido muito especiais para ela – e quase a tinham levado ao altar:
O primeiro se chamava Fred – e era músico.
O segundo era dono de uma joalheria – e se chamava Roberval.
– Fred, meu amor, faz uma música pra mim!
– Faço!
– Roberval, meu amor...
A mãe execrara o músico:
– Maria Laura, minha filha, você quer morrer de fome, é?
– Mãe, olhe, isso é preconceito!
Um dia a velha atendeu ao telefone e...
– Moço, fique longe da minha menina!
Fred, sempre bem-humorado, respondeu:
– Se fizer isso eu vou morrer, dona Marta!
– Pois morra, está ouvindo? Morra que já vai tarde!
Maria Laura, enfezada, tomou o aparelho:
– Mãe, eu gosto dele e ele gosta de mim, entende?
Logo, logo, no entanto, a própria Maria Laura poria termo ao compromisso. Motivo: a música que Fred, por mais que tentasse, não conseguia compor para ela.
– Acho que ele não me amava o bastante – desabafou com uma amiga.
Um ano e meio depois – era o começo da primavera –, ela apareceu em casa com Roberval, quinze anos mais velho, divorciado e com três filhos.
A mãe o recebeu radiante:
– A casa é pobre, mas é nobre. O senhor fique à vontade, viu?
Tudo ia de bem a melhor quando Roberval, na maior molecagem, decidiu voltar para a ex.
Faltava pouco mais de um mês para o casamento...
Maria Laura, claro, ficou arrasada.
– Os homens não prestam mesmo! – arrematou.
Assim como no final do romance com Fred, também era outono...
Folhas amarelas caíam das árvores, misturadas às lágrimas que Maria Laura – abraçada ao seu ursinho de pelúcia – vertia sem parar...

O PRÊMIO

Noite dessas, zanzando pela net afora (ou adentro, como queira!), deparei com a informação de um concurso de crônicas. A promovente era uma editora carioca, que pedia textos de 140 caracteres a 1.000 palavras versando sobre a amizade. Agora, pasmem os senhores: o prêmio seria um livro autografado por ninguém menos que Luis Fernando Verissimo, Zuenir Ventura e Arthur Dapieve! Fechei os olhos e comecei a sonhar com o tal livro, para, ao abri-los novamente, perceber que o prazo de inscrição vencera um mês antes. “Droga!”, gritei quase acordando a minha vizinha. Ou acordando mesmo, sei lá – ora, a Dona Candinha que fosse se danar! De raiva, desliguei o computador e fui dormir. Então sonhei que nós quatro nos encontrávamos numa sala: Verissimo, Zuenir, Dapieve e eu, naturalmente. Na mesa em torno da qual nos reuníamos, havia um exemplar de Conversas Sobre Tempo, obra que seria ofertada ao vencedor do concurso – que, nesse caso, era eu... Estávamos em silêncio. Ninguém olhava para ninguém. Todos tínhamos os olhos fixos no livro. De repente, os três se precipitaram sobre ele. O Dapieve foi mais rápido e agarrou o ditocujo. E ainda ficou rindo da cara abestalhada dos outros. “Isso não teve graça nenhuma!”, disse o Verissimo com azedume. “Graça nenhuma!”, repetiu o Zuenir, igualmente azedo. E, olhando para mim, perguntou: “Você acha que teve?” Nervosíssimo, gaguejei algo ininteligível e o trio caiu na gargalhada. Não tive remédio senão rir também. Rimos dois dias seguidos, até que o Dapieve me perguntou: “Qual o seu nome?” Já completamente à vontade, respondi: “Milos. Milos de Solim.” Ele autografou o livro e o entregou ao Verissimo. Este me olhou bonacheirão e assinou também. De posse do livro, o Zuenir falou: “O que você vai fazer com este livro, Milos?” “Vou lê-lo do começo ao fim!”, falei tentando ser engraçado; mas os três ficaram muito sérios e eu não soube onde enfiar a cara. O Zuenir rubricou o livro e, com o bicho nas mãos, levantou-se. O Verissimo e o Dapieve o acompanharam. Eu não sabia se levantava ou se permanecia sentado. “Levante-se, Milos!”, disse uma voz atrás de mim. Eu me voltei e não vi ninguém. Quando tornei a olhar para a frente, os escritores haviam sumido! E, com eles, ai!, e com eles o meu livro-livrinho-livrão... Nessa hora acordei. Havia um cheirinho gostoso de café no ar. Café de Dona Candinha! Ainda estava escuro, mas – como sempre – a velha cantarolava e fazia aquela barulheira infernal com as panelas... Eu sorri satisfeito. E me levantei com uma disposição dos demônios!

segunda-feira, 25 de outubro de 2010

HISTORINHA

Uma das coisas que eu mais gostava era de sentar na areia da praia e ficar contemplando a fúria do mar...
Uma vez eu estava assim, quando vi aproximar-se de mim um velho de longas barbas brancas. Lembrei logo daquele velhinho da História da Galinha dos Ovos de Ouro. Mas eu não tinha nenhuma vaca para vender – e ele certamente não tinha nenhum feijão mágico para me oferecer.
Engano meu: ele tinha, sim...
“Quer trocar esses seus óculos escuros por cinco grãos de feijão?”, perguntou o coroa ajoelhando-se ao meu lado.
“O quê...?”
Ele repetiu a pergunta e, espalmando a mão direita, exibiu quatro carocinhos de feijão preto.
“O senhor disse cinco grãos!”, protestei.
“Sim, eu disse.”
“Então cadê o outro?”
O velho sorriu:
“O quinto é surpresa! Quer trocar?”
“Quero. Mas só se for pelos cinco!”
“Abra sua mão!”
Eu obedeci, e ele me entregou o feijão:
“Agora me dê seus óculos!”
Estendi o feijão de volta:
“O senhor não entendeu: eu falei que troco pelos cinco grãos!”
“O quinto é surpresa, eu já disse!”
“E quem me garante que o senhor não vai me passar a perna?”
“Você vai ter que confiar. Aposto que não vai se arrepender!”
Guardei o feijão no bolso da camisa:
“Está bem, eu troco. Mas, se o senhor estiver me enganando, eu juro que arranco sua cabeça fora!”
“Seria justo, amigo. Os óculos, por favor!”
Lamentando por meus lindos óculos, vi o sujeito desaparecer como um rato na multidão de banhistas...
Demorei ali sentado por um bom pedaço de tempo, ainda; depois fui para casa.
“Mãe, troquei meus óculos por cinco grãos de feijão. Olhe!”
“Aí só tem quatro, Guilherme.”
“O velho lá na praia me garantiu que o quinto é surpresa. Tome, jogue tudo pela janela!”
Ela prontamente fez o que pedi.
Anoitecia. Tomei banho, jantei e saí para a rua. Voltei às onze, depois de ter ido numa casa daquelas no centro da cidade. Mãe já estava dormindo. Fui direto para a cama.
De manhã, acordei com uma barulheira dos demônios.
“É o pé de feijão!”, gritei correndo até a cozinha.
Mãe espiava pela janela. Assistia empolgada ao corte de uma árvore condenada que ameaçava cair sobre o nosso muro e a cabeça de algum transeunte desavisado. (Curiosamente, era o próprio Prefeito quem comandava o serviço. Em mangas de camisa e suando em bicas, ele exibia o sorriso mais bonacheirão deste mundo!)
Furioso, voltei à praia naquela tarde.
Não vi nem sinal do velho...
Mas conheci uma garota maluquinha de short amarelo – e pois não é que me apaixonei mesmo pela danada?!?
Agora levo sempre Abigail comigo à praia. Não à tarde, como eu costumava – por causa da agitação do mar; mas de manhã cedo – o mar calminho, calminho...