terça-feira, 15 de novembro de 2016

ERA UMA VEZ O AMOR

Era uma vez um rapaz, chamava-se João, João tem demais no mundo, é uma loucura, ele era só mais uma nessa multidão, quem sabe, talvez não.
Um dia João casou-se com Maria, a das Dores, embora antes tenha namorado outras três Marias, que também são tantas, nem todas santas.
Tiveram uma penca de filhos, cinco, três princesas e dois príncipes, o mais novo com um mês apenas, era uma escadinha que não tinha fim.
Quando o pequerrucho fez um ano, esperava-se que Maria engravidasse de novo, mas não, o que ela fez surpreendeu a todos, pois foi, deu no pé.
De tarde, os filhos dormindo, outros na escola, ela ajeitou uma bolsa, catou algum dinheiro, e  ligou de um orelhão, adeus, venha para casa, João.
O marido, sem entender, herdou a criançada toda, pensou que fosse enlouquecer, sem norte, direção certa, ai, meu Pai, o que eu faço agora?
O patrão, deveras comovido, dispensou ele uns dias, enquanto João dava um jeito na vida, quem sabe a Maria não voltava, e tudo se arrumava?
Mas não, a desnaturada não voltou, nem ali nem na semana seguinte, e João arranjou uma moça para cuidar da meninada, o pobre estava exausto.
Lurdinha morava lá embaixo, perto do rio, ótima, dava gosto vê-la em ação, os meninos limpinhos, de bucho cheio, a casa toda arrumada.
Passava o dia com as crianças, de noite, quando João do serviço chegava, ela voltava para casa, morava só com a mãe e um irmão tantã, até amanhã.
Certo dia, meio a medo, João propôs que ela dormisse no emprego, os filhos gostavam tanto dela!, seria melhor, você não acha, por que não?
Lurdinha hesitou um pouco, carecia de falar com a mãe, de manhã ela disse que topava, e João, agradecido, bem-humorado, reajustou o ordenado.
Ora, foi uma beleza!, e tanto foi que Lurdinha e João começaram a se engraçar, um mês depois estavam dormindo juntos, ela logo engravidou...
Justo quando o menino nasceu, sabe quem foi entrando de repente em casa?, sim, era a Maria!, foi entrando e escorraçou a moça, abraçou os filhos.
Quando João chegou do trabalho, foi aquele susto, perguntou cadê Lurdinha?, já sabia a resposta, Maria no pé do fogão, o cheiro bom da janta.
João exigiu uma explicação, Maria neca, então ele saiu, correu lá na beira do rio, Lurdinha podia voltar, vamos, vem, a outra vai embora já!
Lurdinha voltou, mas a outra, por mais que João pedisse, não arredou pé, e o tempo foi andando, e as duas foram ficando, olhar, silêncio e ódio.
Até que um dia, como dissimular?, João mandou a casa aumentar, Lurdinha em um quarto, Maria no outro, as duas suas esposas, era o jeito...
A vizinhança não viu aquilo com bons olhos, João um bígamo, um depravado, que pecado, não tinha ele medo de arder no fogo do inferno?
Mas João era querido ali por todos, e quando se gosta, o olho finge, e fecha e cega, de forma que a família foi deixando de causar espantamento.
De seis, a filharada pulou para oito, mais um de Lurdinha, outro de Maria, e foi quando João morreu, seu carro caído no córrego, um desastre feio.
Meio às lágrimas, as mulheres foram obrigadas a trabalhar fora, as duas se revezando com a gurizada, mas o impacto foi atenuando, a vida segue.
Tempos depois, o escândalo se espalhou, as duas mulheres estavam juntas, dividiam a mesma cama, tudo, era o amor surpreendendo a solidão...
Lurdinha e Maria taparam os ouvidos, falassem à vontade, elas só queriam uma coisa, ser felizes, felizes para sempre, que louco que não quer?

quarta-feira, 24 de agosto de 2016

O INIMIGO DO PAPAI

Papai sempre chega do serviço às 6:30. Ele nunca se atrasa. E sempre traz um doce no bolso da camisa. Um docinho de banana ou de goiaba que ele ganha na hora do almoço e guarda pra mim. 

“E aí, filho, como foi hoje na escola?” “Normal, papai.” “Nada de diferente?” “Nada.” “Mas nada mesmo?” “Nadinha, papai.” “Mas que escola, hem. No meu tempo era uma novidade, só.” 

“Papai, me compra uma bicicleta?” “Não era um aviãozinho?” “Prefiro uma bicicleta do Ben 10.”  “Vá fazer sua tarefa, meu filho.” “Já fiz. O senhor compra?” “Psiu, quero ver essa notícia no jornal...”

Papai chega às 6:30. Antes, veio o Valtenor. Mamãe disse que é primo. Apareceu de repente. Foi aquela alegria. Depois mamãe me pediu pra ir na padaria. O Valtenor até me deu uns trocados. 

“Toma, filho.” “A bicicleta?!” “Não, o doce.” “Já falei que estraga os dentes, Alonso.” “Depois ele escova, né, filho?” “Vai botar a perder esse pirralho, escuta o que eu digo.” “Bobagem, mulher.”

“Mamãe, cadê aquele seu primo?” “O  quê?” “O Valtenor. Quando ele vem aqui de novo?” “Como é que eu vou saber, menino?”  “Ele é um cara legal.” “Ah,  vai ver, qualquer hora ele aparece aí...”

Então o Valtenor veio outra vez. “Oi, Valtenor, como você demorou!” “Pois é, Pedrinho...” Mamãe ficou toda feliz. Fui na padaria de novo. Dessa vez, não ganhei nada do primo. Mesmo assim saí aos pulos.

“Como foi na escola, filho?” “Normal, papai.” “Puxa, mas que escola!” “Papai, e a bicicleta?” “Muito cara, filho. Principalmente a do Ben 10... Agora não dá, tenho umas contas aí. Sinto muito...”

“Mamãe...” “O quê?” “O Valtenor é rico?” “Sei lá, menino.” “Pelas roupas deles, eu acho que é.” “A gente não  deve julgar o livro pela capa. Por que está perguntando isso?” “Por nada, mamãe, por nada...”

Terceira vez que eu vou na padaria. Mamãe ficou lá na sala com o Valtenor, que me deu umas moedinhas. Quando voltar, crio coragem, peço uma bicicleta do Ben 10 a ele. Ele é rico. Se negar, já sei o que fazer... 

Mamãe falou que papai e Valtenor nunca se deram bem, desde criancinhas. Por isso mesmo pediu segredo sobre as visitas do primo. Evitar briga, confusão. Violência, meu filho, é uma coisa triste.

segunda-feira, 6 de junho de 2016

UNS E OUTROS

No meio da minha rua,
apareceu de repente
um buraco no asfalto.
Um buracão.
Dizem uns:
– Culpa do prefeito!
– Uma afronta!,
dizem outros,
batendo no peito...
– Bobagem!,
riem dois ou três.
Assim a gente
chega mais rápido
no Japão.
E melhor: sem gastar
um tostão.

domingo, 15 de maio de 2016

A CRUZ

Seu pai era marceneiro, e foi com ele que João aprendeu o ofício.
Logo virou um profissional exímio.
Um dia, já homem feito – depois de fabricar uma porção de mesas, armários, cadeiras e até caixões de defunto –, resolveu fazer uma cruz.
Para ele, segundo o próprio.
Queria morrer pregado nela.
“Você quer ser Jesus Cristo, é?, disse sua mulher, ao saber daquele disparate.
“Claro que não!”, replicou ele.
“Então, por que essa loucura? Eu não te entendo!”
“Nem eu...”, tornou ele. “Nem eu me entendo, às vezes...”

...

Um mês depois, a cruz ficou pronta.
Os vizinhos, que tinham acompanhado todo o processo de feitura do madeiro, perguntavam, perplexos:
“Mas, João, você tem mesmo coragem de morrer crucificado?!”
“Tenho.”
“E quem vai pregar você na cruz? Você não pode se pregar sozinho, pode?”
“Não.”
“Pois então, como é que vai ser?”
“Na hora certa todos saberão.”
Os vizinhos, penalizados, balançavam a cabeça.
João havia enlouquecido. Coitado.

...

Certa noite, enquanto jantavam, João disse de repente:
“Maria, sexta-feira que vem será o grande dia.”
“O que é que tem?”
“A crucificação. A minha.”
“Pare de bestagem, homem. Sossegue. O melhor que você faz é me deixar usar aquela cruz como lenha, assim a gente economiza gás.
João sorriu.
A mulher só podia estar de brincadeira.

...

No dia seguinte, inesperadamente, Maria foi embora para a casa dos pais. Subiu no pau-de-arara com as duas malas e só fez dizer para o marido:
“Adeus, João.”
Ele, de pé na varanda, calado estava e calado ficou.
Quando o caminhão sumiu numa curva da estrada, João levantou-se, entrou no pequeno galpão onde estava a cruz, e, ajoelhando-se diante dela, disse:
“Pronto... Começou o meu calvário!”

...

Sexta-feira chegou. João passou o dia numa inquietação danada. Tudo parecia nebuloso, e foi assim, nessa nebulosidade, que mais uma semana transcorreu.
Na sexta seguinte, João teve febre alta, altíssima!
À noite, foi dormir pensando na esposa. Ela tinha razão... A cruz daria uma boa lenha. E logo agora que estava sem dinheiro, e o botijão de gás havia secado.
Mas depois, sério, reconsiderou: e se aquela ideia não passasse de uma tentação do diabo, para fazê-lo declinar do seu intento, dando adeus à crucificação?
Melhor analisar aquela situação com calma, pensou.
Estava disposto a suportar todo e qualquer castigo, desde que não tivesse que ir para o inferno.







segunda-feira, 9 de maio de 2016

MINGAU PARA DOIS

Lá fora, fustigando as árvores e o telhado do casarão, o vento é um prenúncio de temporal.
Cá dentro, na cozinha, a luz das velas deita sombras fantasmagóricas no chão, na mesa, nas paredes.
O velho prova o mingau do jantar, cospe, e empurra o prato:
            – Tira essa gororoba da minha frente!
            A moça balança a cabeça:
            – Deixe de birra, papai, e coma de uma vez...
            – Está surda, sua diaba? Tira isso daqui!
            Num gesto maquinal, a moça pega o prato e vai depositá-lo na pia.
            O velho se esparrama na cadeira, pronunciando coisas ininteligíveis.
            Repentinamente, uma mosca faminta, enorme, pousa no prato de Lucimara.
            Os olhos do velho, de rato, brilham de excitamento.
A moça retorna à mesa; a mosca alça voo rápido.
            Arzinho sarcástico, o velho diz:
            – Você viu?
            – O quê, papai?
            – A mosca. Lambeu sua gororoba aí e deu no pé.
            Lucimara faz uma careta, sentindo o estômago embrulhar.
            O velho desfere uma gargalhada:
            – Come, menina, come!
            – Pare com isso, papai. Não vou mais comer.
            Os dois ficam um instante em silêncio.
Depois o velho volta a falar:
            – Hoje é o aniversário de sua mãe, não é mesmo?
            – É, papai.
            – Quantos anos, hem?
            – O senhor devia saber.
            – Vai fazer um bolo bem bonito para ela, não vai?
            – Não... Não vou.
            – Mas por que, filha? Por quê?
            – Porque mamãe está morta!
            O velho arregala os olhos, leva a mão ao peito:
            – Morta?!
            – Sim, papai. O senhor a matou!
            – Não!
            Aí o velho desembesta a chorar:
            – Não... Eu não a matei, juro por Deus!
            Lucimara acerca-se dele, faz um pequeno carinho em seus cabelos ralos.
            E então o abraça, entre lágrimas:
            – Droga, papai, por que nunca consegue se lembrar?
            E, em seguida, esbofeteando-o:
–Por que, por que, seu desgraçado?


segunda-feira, 25 de abril de 2016

3 POEMAS


MARCA

com o dedo
teu nome escrevo
no chão

a chuva vem
e leva embora
nossa paixão

o amor
intacto ficou
no coração

CANÇÃO INVERSA

minha canção
do exílio
diz

ontem lá
hoje cá
porém feliz

saudade
apenas
da palmeira
do sabiá

de resto, lá
é um país
onde se vive
por um triz

CEIA

Na parede, de um lado,
Jesus Cristo,
o filho de Deus,
e todo o apostolado.

Do outro lado,
o relógio de pêndula
– e também o tempo,
essa cria do diabo.

Entre o relógio e o quadro,
à mesa jogado,
mastigo meu mingau
e este fogo cruzado...




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quarta-feira, 30 de março de 2016

OS SINOS DO DESEJO

Acordou ouvindo o barulho de sinos. Muitos sinos. Centenas. Milhares. Blem... Blem... Blem... Blem... Aí pensou, estou sonhando. Ou então ficando louca.

Despertou com os gritos da mãe, ali, ao pé de sua cama:
– Acorda, Marlene. Você vai se atrasar, menina!
E, antes de sair, ainda gritando:
– E pare com essa mania de dormir pelada. Coisa mais feia!
A porta do quarto se fechou, e só então Marlene abriu os olhos. Primeiro o esquerdo, depois o direito.
Levantou-se coçando as axilas, as coxas.
Quando entrou no chuveiro, sentiu uma ligeira fisgada na cabeça.
Então se lembrou dos sinos. Do ventinho gelado na pele...
Sorriu. Amava dormir pelada.

Blem... Blem... Blem... Blem...

– Marlene!
– Já vou, mãe, já vou.

Levantou-se. Abriu a janela e espiou para fora. A noite desprendia os primeiríssimos sinais do amanhecer. Um momento único de cores, um mundo de desejos e odores.

– Mãe, ouviu algum barulho estranho hoje de manhãzinha?
– Que barulho?
– De sinos, sei lá.
– Não ouvi nada. E tome logo esse café, menina. Você vai se atrasar.

O vento soprava de leve, gelado. Marlene sentiu um arrepio na pele, por debaixo da camisola de seda...

Antes de sair, Marlene conferiu o batom no espelhinho que sempre carregava na bolsa.
Um rosa discreto.
Bem ao estilo de uma professora de Português, pensou com um sorriso, sem entender de onde havia tirado aquela ideia boba.

Lá adiante, a torrezinha da igreja apontava para as estrelas que aos poucos iam se apagando... Lá estava o sino. Muito pequeno, não podia fazer tanto barulho assim!

Entre um exercício e outro de orações subordinadas, Marlene notou aquele mesmo olhar verde e insistente em seus seios.
Estaria enganada?
Dessa vez, decidiu revidar:
– Rafael!
– Pois não, professora.
– Classifique a próxima oração.
– Hum... Eu acho que é... substantiva subjetiva!
Não, era objetiva direta.
Tanto que Marlene havia explicado!

Estou mesmo louca, pensou Marlene. Fechou a janela. Voltou para a cama. Cobriu-se da cabeça aos pés, e ainda assim a barulheira dos sinos continuou...

Ao sair da escola, foi na loja da Su e comprou duas camisetas, um short amarelo e também uma camisola de seda.
Em casa, almoçou e foi tirar uma soneca, antes das aulas da tarde.
Quarta-feira era o seu dia mais cheio. Marlene  não sabia se amava ou odiava isso.
Provavelmente amava.

Uma tortura. Um martírio. Cada vez mais forte. Cada vez mais verde. Cada vez mais perto...

À noite, Marlene vestiu a camisola de seda, pegou um livro de contos e deitou-se.
Logo estava ferrada no sono.
E não é porque o livro fosse chato, era cansaço mesmo.

Acordou ouvindo o barulho de sinos. Muitos sinos. Centenas. Milhares. Blem... Blem... Blem... Blem... Aí pensou, estou sonhando. Ou então ficando louca.

quinta-feira, 17 de março de 2016

O DOG

“Au! Au!”, latiu o cachorrinho para a sua dona.
         E então pulou na cama.
         A mulher sorriu.
         Depois, séria, disse:
         “Olha lá, hem, Armando, não vai me morder!”
         O marido murchou as orelhas.
         Parou de abanar o rabo.
         Ser meio marido... bom, até que era fácil.
         Mas meio-cachorro, será que conseguiria?!?

quarta-feira, 2 de março de 2016

O ÚLTIMO BIFE

Está chovendo. É uma chuva forte, porém triste...
Mentira. Na verdade, sou eu que ando meio triste... São tantas coisas, sei lá!
            Acabo de chegar do trabalho, da rua.
            Demorei um pouco no bar do Felipe. Tomei quatro cervejas, sozinho, ao pé do balcão.
            Lá pela segunda latinha, um casal começa a discutir na mesa ao lado:
            – Cansei das suas mentiras, das suas traições, Artur!
            Não presto atenção no resto.
            O problema não é meu, eles que deem um jeito naquilo.
            Terminado o último gole, me despeço do Felipe e sigo para casa.
            A chuva me pega a cem metros do portão.
            Entro, minha esposa está vendo TV na sala com as crianças.
            Julinho corre ao meu encontro:
            – Nossa, papai, você está todo molhado!
            Ana Alice, minha filha, mal desgruda os olhos da novela, é como a mãe...
            Rute se levanta:
            – Vá se trocar, Miguel, vou pôr sua janta.
            Pergunto, quase em silêncio:
            – Alguém ligou pra mim?
            – Não. Por quê?
            – Por nada...
            Entro no quarto.
            Enquanto dispo a roupa molhada, penso no casal brigão lá do bar.
            “Estou cansado das suas mentiras, Rute!...”
            E então, chorando, decido não jantar hoje, mesmo que seja bife acebolado com farofa, feijão e macarrão...
            Nem hoje, nem amanhã, nem nunca mais!

terça-feira, 1 de março de 2016

VIDA FERIDA

Portão
entreaberto,
entro
sorrateiramente
no jardim
e pego
uma rosa...

De repente,
a mulher
de bigodes
aparece
na janela:
– Pega ladrão!

Saio
em disparada
e as pétalas,
uma a uma,
vão ficando
pelo caminho...

É assim
que a polícia
vai atrás
de mim;
então sou
preso,
espancado
e (tadinho)
sentenciado...

... aos espinhos!

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2016

ERÓTICO SACI


           Naquela manhã, quando acordei, dei de cara com um Saci no meu quarto.

            – Bom dia, Saci Pererê!

            Ele não respondeu. Em vez disso, deu três pulinhos e se sentou na beira da cama.

            Alisou a colcha – “Macia, né?” – e a mão escapuliu no meu pé...

            Recuei:

            – Ih, sai pra lá, safado!

            – Desculpe, não foi por querer...

            – Esquece.

            – Desculpe mesmo, cara... Escuta, posso tirar um cochilinho aqui?

            – Na minha cama? Pode. Mas só depois que eu me levantar.

            – Quando você vai levantar?

            Não respondi.

            Tentei dormir um pouco mais, afinal era domingo, mas a presença do Saci me incomodava.

            Me levantei:

            – Taí, fique à vontade. Vou pegar um ducha.

– Nesse frio?

– É.

Peguei uma toalha e entrei no banheiro, não sem antes ordenar ao Saci:

– Deita e dorme!

Meu banho durou uns dez minutos.

Quando saí do banheiro, vi que o Saci continuava no mesmo lugar, imóvel, o olhar perdido na janela fechada.

– Em que tá pensando?

– Tô preocupado...

– Com o quê?

– A mula-sem-cabeça. Ficou de vir e até agora não veio.

– Pra cá?

– Sim.

– Fazer o quê?

– Dormir comigo.

– Na minha cama?!

– É claro.

Nesse momento, tocaram a campainha. A mula-sem-cabeça, decerto...

Fui ver:

– Quem é?

– Sou eu, amor.

– Pode entrar.

Luciana entrou.

– Oi. Que cara é essa?

– Tem um Saci no meu quarto – puxei-a pela mão, em desespero. – Vem ver...

– Você tá maluco?

– Não tô, não.

– Só acredito vendo.

– Então veja... Ué, sumiu, o danado!

Luciana sentou-se na cama:

– Conta outra. O que um Saci ia querer no seu quarto?

– Primeiro, dormir. Depois transar.

– Com quem? Com você?

– Com a mula-sem-cabeça.

Luciana sorriu maliciosa:

– Mula-sem-cabeça, é? Seu taradinho...

Sorrimos, cúmplices.

Daí que a gente se empolgou com aquele folclore todo... perdemos a cabeça – e eu juro que nunca saberia dizer onde começou a perna de Luciana e terminou a minha...

E vice-versa!