segunda-feira, 12 de abril de 2010

APROFUNDANDO SHAKESPEARE

Existem mais coisas entre o Céu e a Terra do que supõe a nossa vã Filosofia, escreveu Shakespeare. Tá bom. Mas, hoje em dia, isso não é mais nenhuma novidade...
Conto o que foi!
Fazia alguns meses que eu me mudara praquela cidade maravilhosa, em busca de trabalho. Morava com dois primos – um deles por parte de pai, e o outro por parte de mãe.
Naquela noite – véspera de Natal –, meus priminhos haviam saído pruma festa com uns amigos. Apesar de terem insistido muito pra que eu fosse com eles, eu preferi ficar.
Assim que eles saíram, peguei um Cantina na geladeira e pus uma música antiga – se não me engano dos Fevers. Fiquei bebendo e matutando uma série de coisas quando ouvi baterem na porta. De um pulo, corri e abri. Achava que fosse Lia, uma garota que morava ali perto e com quem eu me dava superbem.
Não era. Era o Jorge.
“Oi, Marcos... Posso entrar?”
“Claro, entra aí”, falei sem atinar com o motivo daquela visita-surpresa.
A um gesto meu, ele sentou-se. Notando meu estranhamento, se justificou: deitara pra dormir e tinha ouvido a música. Como tava sozinho em casa – sua esposa fora passar o Natal com os pais –, pensara em vir papear um instante comigo.
“Aceita um pouco de vinho?”, perguntei.
Ele quis e eu lhe dei um copo.
Ele bebeu um gole, dos grandes; depois, esticando as pernas, falou:
“Eu vi os seus primos saindo...”
“É; festinha com os amigos...”
“Por que você não foi junto?”
“Não gosto dos amigos deles. São tudo gente chata!”
Ele riu:
“E eu, Marcos... Você acha que eu sou chato?”
Gaguejei:
“Não... Eu... Você me parece ser um cara legal...”
Ele tomou outro gole:
“Se de fato acha isso, então por que você mal fala comigo? Faz um tempão que você veio pra cá e, nesse tempo todo, a gente só se falou umas duas ou três vezes, no máximo!”
“É que eu sou um tanto tímido...”, me desculpei.
Ele mirou bem dentro dos meus olhos:
“Não precisa ter vergonha de mim, rapaz. Afinal de contas, você mora do meu lado! Sei que tenho idade quase pra ser seu pai, mas quero ser seu amigo... pro que der e vier!”
Sorri amarelo. Minha cara devia tá vermelha que nem um pimentão.
Pra disfarçar, tive que ir no banheiro:
“Coloque aí o cd que você quiser, eu já venho.”
Quando voltei da toalete, nem sinal do Jorge.
“Ué”, pensei, “onde ele se enfiou?”
Abri a porta, olhei a rua – e nada.
Fechei a porta, me sentei do novo na poltrona – e vi que o vinho acabara.
Vociferei:
“O sacana só veio detonar com minha bebida e deu no pé. Palhaço!”
Procurei um novo cd e tava colocando no som quando, sutilmente, a porta se abriu e o meu vizinho – com um sorrisinho matreiro – adentrou carregando duas garrafas de vinho.
“Fui pegar um negocinho ali pra nós... Você não se importa, não é?”
“Claro que não, fique à vontade!”
Apertei o play e a doçura da música tomou conta do ambiente.
Ele abriu uma garrafa:
“Quem é esta que tá cantando?”
“Madeleine Peiroux. Você gosta?”
Jorge não respondeu. Em vez disso, serviu meu copo e o dele. Ao me entregar o copo, sentou-se de repente do meu lado; até então, ele estivera no outro sofá.
Num impulso, me afastei pra dar espaço...
Ele me segurou firme pelo braço.
“Espere”, eu gemi.
Ele me largou, visivelmente desapontado:
“Você não quer?”
Antítese perfeita de Hamlet e sua penosa irresolução, eu nem pisquei:
“Quero, sim. Vou só apagar a luz...”

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