quarta-feira, 17 de outubro de 2012

A ÚLTIMA FLOR



I

As mãos peludas e enrijecidas prendem o enorme crucifixo sobre o peito, e em cada quina da mesa as velas se consomem preguiçosamente diante do olhar silencioso da assistência. A esposa chora a um canto, amparada pela filha única, Bianquinha. A menina, de nove anos, fita o falecido e – ainda que não esteja chorando também – amarga uma dor tão sofrida quanto à de sua mãe.
Mas a tristeza ali é geral:
Seja na pequena sala abarrotada de mulheres e crianças, ou lá no alpendre onde os homens fumam e se coçam, ou, ainda, na cozinha onde as comadres aprontam mais algumas garrafas de café – é grande e profunda a comoção...

II

Parece até mentira, mas o homem estirado na mesa é ninguém menos que Zé Limoeiro – um dos cabras mais brigões que aquele pedaço de chão já vira, e um dos cidadãos mais queridos e admirados pela gente dali e de muitas outras cidadezinhas pelo sertão afora...
Não abane a cabeça, leitor – o desconchavo se justifica: Zé podia ter as suas faltas (quem não tem?), mas ele carregava consigo uma grande virtude: só mexia com quem mexia com ele. No seu natural, era manso como um cordeiro. Bom pai, bom marido, bom amigo dos seus amigos e respeitador dos seus inimigos. Mas implicasse com ele, ou com os de sua estima – e o vaqueiro virava um leão! E sabe como é, né? Já que por ali não havia polícia nem nada, ele acabava servindo, vez por outra, de excelente escudo de proteção para algum companheiro ultrajado...

III

Certa feita – era uma manhã de domingo, Zé fora até a venda de seu Ambrósio tomar a sua pinguinha habitual e trocar dois dedos de prosa –, por pouco ele Zé não deu cabo de um branquelo espigado que se meteu a besta com ele. O nojento – que ia tocando meia dúzia de burros carregados de farinha, sabe-se lá para onde! – parou ali na bodega só para tomar um trago. Mas, nem bem entrou, já foi logo soltando das suas: chutou para o lado um tamborete, e deu aquela cusparada quase nos pés de Joaquim Milonga. O pobre homem, ainda não de todo embriagado, disse ocê é muito maleducado, viu, seu moço? O sujeito escancarou um sorriso falhado e falou achou ruim dá um jeito, vovô! E, se encostando muito à vontade no balcão, mandou botar meio copo de cana “da boa”. 
Seu Ambrósio olhou para Zé Limoeiro – que, acariciando o seu copo ali na mesinha, mal se continha diante daquela palhaçada! – e pôs a cachaça do abusado forasteiro. O bicho bebeu de uma só lapada e lascou outra cuspida – dessa vez acertando em cheio os pés de Joaquim Milonga.
Foi o tempo de o cuspe atingir os pés do velho e Zé Limoeiro agarrar o sujeito pelo pescoço, encostando-o na parede. Seu moleque, esbravejou, ocê respeite os mais velhos! E, afrouxando um pouco as mãos, disse pague a sua conta e siga sua viagem – senão é aqui mesmo que ocê vai ficar enterrado!
Com certa dificuldade, o sujeito puxou uma nota amassada do bolso e a estendeu a seu Ambrósio. Zé Limoeiro, largando-o com desprezo, voltou então para o seu canto – e até as moscas se calaram, tal foi o peso do silêncio que desabou ali dentro.
O homem recebeu o troco e saiu da mercearia sem olhar para ninguém; mas, dois segundos, depois retornou com uma peixeira na mão. Cuidado, Zé! gritou o bodegueiro. Zé quase não teve tempo de se defender. A faca passou raspando na sua barriga – ainda chegou a cortar um pedaço da bonita camisa xadrez que Francisca, sua esposa (uma modista de mão cheia!) tinha acabado de fazer para ele...
Está visto que Zé não ia deixar aquela afronta assim barato: voou em cima do branquelo, tomou-lhe a faca e encostou a danada na cara dele. Tá querendo morrer, desgraçado? perguntou entre os dentes; e, como o estranho desse uma terceira cuspida que lhe passou raspando a orelha, o Zé ficou doido e disse a tua hora chegou, condenado! E, com certeza, teria cometido uma loucura – se Bianquinha não lhe agarra pelas costas, gritando por favor, por favor, solta ele, meu pai!
A menina e a mulher tinham vindo correndo, ao serem avisadas por Curió, o filho do dono da ferraria em frente à bodega de seu Ambrósio – onde num instantinho foi juntando uma interminável multidão de curiosos.  Atendendo aos apelos da menina, Zé largou o homem e disse vou falar pela derradeira vez: ocê chispe ligeiro daqui ou não respondo por mim!
Tremelicando feito vara verde, o branquelo se levantou e sumiu rapidinho com o seu magote de burros, como se estivesse fugindo da figura do tinhoso... Joaquim Milonga – debochado – virou o restinho de cachaça do seu copo e gargalhou dizendo esse aí nunca mais aparece por aqui! É mesmo! concordou seu Ambrósio. E os dois gargalharam juntos.
Zé Limoeiro, abraçado à filha, disse o filho d’égua estragou minha camisa nova! A mulher respondeu eu dou jeito nisso aí, homem de Deus! E, aproveitando que estava ali, ela entrou em visita à esposa do bodegueiro – sua prima e membro dedicada do grupo de oração Guerreiras da Fé, do qual Francisca era a presidenta. Bianquinha a acompanhou, e tudo ficou bem; nem que fosse por enquanto – pois é certo que esta não foi a primeira e estava longe de ser a última estripulia em que Zé Limoeiro, direta ou indiretamente, se meteria ao longo da sua vida...


IV

Pau, pedra, faca – e até mesmo tiro de espingarda (felizmente só de raspão!) –, Zé enfrentou de tudo um pouco em seus quase “quareeeenta verãos”, como ele próprio dizia, ao se referir à idade que pretendia comemorar com uma baita festa. Não foi, no entanto, numa briga que ele acabou os seus dias. Que nada!... O grande Zé Limoeiro – para decepção de três ou quatro desafetos mais enraivados – morreu ao cair do jumento em que montava numa animada corrida de jegues típica do vilarejo – e à qual já vencera duas vezes. No meio do percurso, sem mais nem menos, o Zé se estatelou no chão. Quando acudiram o pobre – ele já estava morto. Tinha quebrado o pescoço!

V

Agora o cabra, o cidadão – o Zé querido e admirado, apesar do sobrenome azedo! –, agora ele segue acompanhado por uma enorme procissão que se espreme no estreito caminho de terra vermelha. O cemiteriozinho mal comporta tantos viventes, tantas lágrimas, tanto converseiro... O padre Leonel precisa pedir silêncio repetidas vezes, enquanto faz a encomendação do corpo. Tem uma hora que ele se irrita de verdade e grita se vocês não se calarem, eu vou ter que expulsar alguns daqui – igualzinho Jesus fez com os vendilhões no Templo! Todos sabem que o padre não está de brincadeira, e de repente o falatório cessa – e então fica parecendo que ali só tem mesmo gente morta...

VI

Junto com a primeira pá de terra, Bianquinha, que está abraçada à mãe – as duas se desfazendo em lágrimas! –, atira uma rosa vermelha sobre o caixão do pai. Diante desse gesto sensível da menina, uma velhinha – comovida ao extremo! – fala em voz alta e tremida vá em paz, Zé, e fique sabendo que ocê foi a flor mais bonita e mais perfumada do nosso jardim!
O velho Joaquim Milonga, como sempre cheio da jeribita – mas igualmente abençoado para ver e ouvir coisas que à maioria passavam despercebidas! –, franze as sobrancelhas grisalhas, apalermado: Diacho, será que Zé Limoeiro, brabo do jeito que era, ia gostar de um comentário desses, todo floridinho assim?
Ele pensa, pesa, analisa a questão – e não chega a uma resposta certeira... Então, roído pela dúvida (mas bem menos do que pelo álcool!), sorri balançando a cabeça de pouco cabelo e quase nenhum juízo. E, decidido, acha melhor esquecer o elogio escroto de Dona Candinha – e chorar mais um bocadinho pelo grande amigo e defensor que acaba de perder...





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