quinta-feira, 22 de abril de 2010

CAFÉ DE MORTE

Cheguei em casa, e chovia muito.
Eram por volta das onze e meia.
Vinha todo encharcado, pois voltara a pé do teatro.
Sem guarda-chuva, sem capa, sem medo da noite escura, sem amor pra recordar.
A peça tinha sido uma porcaria; não valia o preço do ingresso.
Mas tudo bem.
Pelo menos, quando eu entrasse em casa, estariam me esperando minha velha tia e sua cadelinha Rebita.
De fato, mal entrei, Rebita apareceu fazendo festa.
Sorri pra ela, lhe fiz um ligeiro carinho e dobrei pra cozinha.
Minha tia com certeza lá se encontrava, já que um cheiro agradável de café invadia a casa.
Mas nem sinal dela na cozinha.
O fogão dormia silencioso.
E nenhum resquício de café...
Então, de onde vinha aquele cheiro tão forte, tão vivo – tão...?
Chamei a cadelinha.
Em resposta, só o silêncio.
Intrigado, fui pro quarto da minha tia.
Bati uma, duas, tia!, tia! – nada.
Abri a porta.
Entrei no escuro e tateei o interruptor.
Quando a luz acendeu, deparei com minha tia caída ao pé da cama.
Deitada ao lado, focinho no chão, Rebita me olhava furtivamente...
Mas, como...?!
Corri ligeiro pra minha tia, tentei erguê-la pra cama.
Ela era finada, a pobrezinha!
Alvoroçado, a beijei e abracei, disse coisas.
E percebi que era do seu vestido, dos seus cabelos que se desprendia o tal cheiro de café...

...

Esta noite faz um mês que minha tia morreu.
Foi coração, o médico falou.
Tenho trinta e três anos e estou chegando mais uma vez do teatro.
Sem guarda-chuva.
Se amor pra recordar.
Completamente molhado.
(A peça não valia o que paguei!)
Vou preparar uma xícara de café pra me aquecer.
Depois, talvez, eu escreva um poema sobre nada.
E, quem sabe, estrangule Rebita...

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